AS ORIGENS DO PENSAMENTO MODERNO E A IDEIA DE MODERNIDADE
A. A IDEIA DE MODERNIDADE
O pensamento moderno talvez seja mais fácil de ser compreendido por nós, pelo fato de estarmos mais próximos dele do que do antigo e do medieval, e por sermos ainda hoje, de certo modo, herdeiros dessa tradição. Por outro lado, às vezes é mais difícil tomarmos consciência e explicitarmos as características mais fundamentais daquilo que nos é mais familiar, exatamente porque nos acostumamos a aceitá-lo como tal.
O conceito de modernidade está sempre relacionado para nós ao “novo”, àquilo que rompe com a tradição. Trata-se, portanto, de um conceito associado quase sempre a um sentido positivo de mudança, transformação e progresso. Não é à toa que no discurso político frequentemente encontramos esse termo, quando falamos, p.ex., em um projeto de “modernização” do país. Veremos, em seguida, como de fato esses ideais de mudança, ruptura, progresso e inovação, e até mesmo de revolução, surgem e se desenvolvem no início do período que, na história da filosofia, convencionalmente conhecemos como “moderno”, i.e., os sécs. XVII-XIX.
Na verdade, os grandes pensadores do séc. XVII, que podemos considerar como revolucionários e inovadores, p.ex. Bacon e Descartes, jamais se autodenominaram “modernos”, embora adotassem e defendessem, em grande parte, ideais associados à modernidade. A periodização histórica a que nos referimos acima origina-se, na realidade, basicamente do grande filósofo alemão do início do séc. XIX, G.W.F. Hegel (1770-1831). Hegel foi, com efeito, o primeiro filósofo a elaborar uma filosofia da história da filosofia, isto é, a entender a história da filosofia como uma questão central para a própria filosofia
e não apenas como uma crônica ou relato histórico das doutrinas e correntes, ou “seitas” do passado.1 Portanto, pode-se dizer que as Lições de história da filosofia são a primeira obra de história da filosofia concebida em uma perspectiva filosófica e não meramente histórica ou historiográfica. Esta obra resultou de um curso dado inicialmente pelo filósofo em Iena (1805-06), posteriormente em Heidelberg entre 1816-17, e apresentado e desenvolvido em outros momentos até o fim de sua vida em Berlim, sendo editado postumamente por seus discípulos.2
É nessa obra, fundamentalmente, que Hegel estabelece a periodização que adotamos até hoje, dividindo a história da filosofia em três períodos distintos, cada um com suas características específicas e fazendo parte de um mesmo processo: o antigo, o medieval e, em suas palavras, “a filosofia do novo tempo” (Neuzeit), que, segundo ele, “consolidou-se apenas ao tempo da Guerra dos Trinta Anos (séc. XVII), com Bacon, Jacob Boehme e Descartes”, dando especial ênfase a Descartes e à sua “filosofia do cogito”.3
Na realidade, entretanto, o termo “moderno” era usado já na filosofia medieval, designando um novo movimento na lógica a partir do séc. XII, que se opunha à tradição anterior, a chamada logica vetus. A lógica modernorum, ou lógica terminista, tem assim um sentido inovador, introduzindo uma nova problemática nesse campo. Posteriormente, já no séc. XIV, Ockham e seus seguidores serão conhecidos como defensores da via moderna na lógica e na metafísica, estando essa concepção associada ao nominalismo.
Há uma tradição ainda anterior, datando dos primeiros séculos do cristianismo, acerca de questões sobre o objeto da fé, que opõe antiqui e moderni, os antigos e os modernos, sendo os primeiros aqueles que viveram antes de Cristo, e os segundos, os posteriores a Cristo, os “contemporâneos”, por assim dizer.
Uma terceira origem importante da noção de moderno é a famosa querela dos antigos e dos modernos (Les anciens et les modernes), que agitou os meios literários franceses nas últimas décadas do séc. XVII. Enquanto tradicionalistas como Boileau defendiam o classicismo greco-romano, os modernos como Perrault e Fontenelle4se opunham à suposta superioridade dos clássicos e à sua autoridade, defendendo a aplicação da ideia de progresso nas artes e nas letras tanto quanto nas ciências. Essa controvérsia literária parece ter sido efetivamente o primeiro momento em que a ruptura antigos/modernos foi tematizada e discutida conceitualmente. Os termos em que a questão é aí colocada, enfatizando a superioridade do “novo” e a rejeição da autoridade da tradição, terão grande influência no desenvolvimento posterior dessa discussão na filosofia.
A etimologia de “moderno” parece ser o advérbio latino “modo”, que significa “agora mesmo”, “neste instante”, “no momento”, portanto designando o que nos é contemporâneo, e é este o sentido que “moderno” capta, opondo-se ao que é anterior, e traçando, por assim dizer, uma linha, ou divisão entre os dois períodos.
O que nos interessa aqui, nesta discussão preliminar, é como se estabelece a identidade do período moderno e como se configura o próprio conceito de modernidade. Vimos que, do ponto de vista histórico, o uso do termo “moderno” antecede bastante o período que começa no séc. XVII. Inicialmente opõe-se apenas ao antigo, ou ao anterior, designando o atual, o presente, ou contemporâneo, e estabelecendo uma ruptura com a tradição. Duas noções fundamentais estão, entretanto, diretamente relacionadas ao moderno: a ideia de progresso, que faz com que o novo seja considerado melhor ou mais avançado do que o antigo; e a valorização do indivíduo, ou da subjetividade, como lugar da certeza e da verdade, e origem dos valores, em oposição à tradição, i.e., ao saber adquirido, às instituições, à autoridade externa. Procuraremos examinar, em seguida, como se constituem essas noções.
Quatro fatores históricos principais podem ser atribuídos à origem, por vezes de forma contraditória, da filosofia moderna, bem como à influência de seu surgimento e desenvolvimento: o humanismo renascentista do séc. XV, a descoberta do Novo Mundo (1492), a Reforma protestante do séc. XVI e a revolução científica do séc. XVII. Vamos analisar em maior detalhe como contribuem decisivamente para a formação do pensamento moderno, sem ignorarmos, no entanto, outros fatores históricos como o desenvolvimento do mercantilismo enquanto novo modelo econômico que supera progressivamente a economia feudal, e o surgimento a e consolidação dos Estados nacionais (Espanha e Portugal, Países Baixos, Inglaterra e França), que substituem o modelo político do feudalismo. Mais uma vez, devemos insistir que se trata de um processo de transição, já que concepções tradicionalistas continuam a vigorar ainda nos sécs. XVI-XVII, e partes da Europa ainda vivem sob o feudalismo nesse período.
B. O HUMANISMO RENASCENTISTA
Foi Giorgio Vasari, em sua Vida dos mais excelentes pintores, escultores e arquitetos (1550), quem primeiro empregou o termo “renascimento” (rinascitá) para designar a retomada do estilo clássico na pintura pelo pintor Giotlo (séc. XIV), influenciando um novo estilo, que rompe com a arte gótica, característica do final do período medieval. O conceito de Renascimento designando um período histórico, intermediário entre o medieval e o moderno, e abrangendo os sécs. XV a XVI origina-se, entretanto, da obra do historiador da arte suíço Jacob Burkhardt, A civilização do Renascimento na Itália (1860), de grande influência na época.5 Este conceito foi adotado por outros historiadores da arte como o inglês Walter Pater, cuja obra The Renaissance (1873) teve também grande repercussão, generalizando-se posteriormente para outras áreas além da arte.
As histórias da filosofia tradicionalmente não reconheciam no Renascimento importância ou especificidade do ponto de vista filosófico, sendo apenas um período de transição entre a Idade Média e a Modernidade. Atualmente, entretanto, essa tendência tem mudado, e o Renascimento tem sido visto como detentor de uma identidade própria, desenvolvendo uma concepção específica de filosofia e do estilo de filosofar que, se rompe com a escolástica medieval, por outro lado não se confunde inteiramente com a filosofia moderna (séc. XVII).6 Talvez o traço mais característico desse período seja o humanismo que chega inclusive a ter uma influência determinante no pensamento moderno.
O Renascimento, fiel à sua valorização dos clássicos, foi buscar o lema do humanismo no filósofo grego da sofística, Protágoras (ver I. 3), em seu célebre fragmento: “O homem é a medida de todas as coisas.” Este lema marca de forma decisiva a ruptura com o período medieval, com sua visão fortemente hierárquica de mundo, com sua arte voltada para o elemento sagrado e com sua filosofia a serviço da teologia e da problemática religiosa. Assim como ocorrera no início do período carolíngio (séc. IX), o humanismo renascentista retoma a herança greco-romana como base da nova identidade cultural que pretende construir, e os temas pagãos são centrais nas obras de arte desse período, afastando-se assim da temática religiosa e até mesmo aproximando as representações artísticas do cristianismo à Antiguidade Clássica. Por outro lado, o filósofo que mais fortemente marcou os últimos séculos da escolástica, Aristóteles, sofre um certo grau de rejeição, dando-se preferência a Platão. Mas trata-se de um Platão muito diferente do que encontramos no agostinismo, na mística neoplatônica e no Pseudo-Dionísio Areopagita. É o Platão poeta, estilista da língua grega, dialético, de grandes dons literários, que influencia o humanismo renascentista. É curioso que, como ocorre frequentemente nesses momentos de inovação e ruptura, encontramos aí uma forte dose de sincretismo e ecletismo. Platão certamente não foi um humanista no mesmo sentido de Protágoras, a quem aliás sempre criticou, mas no Renascimento ambos são colocados lado a lado e contribuem para a formação da perspectiva humanista. Ao passo que Aristóteles – associado à filosofia teológica da escolástica, às provas da existência de Deus, à lógica a serviço dos dogmas – entra em declínio.
O humanismo rompe assim com a visão teocêntrica e com a concepção filosófico-teológica medieval, valorizando o interesse pelo homem considerado em si mesmo; por outro lado, significa também uma ruptura com a importância dada às ciências naturais após a redescoberta de Aristóteles ao final do séc. XII.
É nesse contexto que o tema da dignitas hominis (“dignidade do homem”) adquire novo sentido, opondo-se ao tema medieval da miseria hominis (“a miséria do homem”), o ser caído, descendente de Adão, marcado pelo pecado original. Giannozzo Manetti foi autor (1452-53) de um dos primeiros tratados
sobre A dignidade e excelência do homem. Nicolau de Cusa escreve em seu De conjecturis (1443): “O homem é um Deus não em um sentido absoluto, porque é homem, mas é um Deus humano.” E o humanista Giovanni Pico della Mirandola, provavelmente influenciado por Nicolau de Cusa, foi autor de uma Oração sobre a dignidade do homem (1486). Essas obras, de caráter ético, valorizam a liberdade humana, veem o homem como centro da Criação, e lhe atribuem uma dignidade natural, inerente à sua própria natureza enquanto ser humano. O homem é um microcosmo, que reproduz em si a harmonia do cosmo.
É significativo que o Renascimento como movimento artístico e cultural tenha surgido no séc. XV na cidade de Florença, então uma das mais ricas da Europa. Seus artesãos e banqueiros haviam construído sua riqueza nos séculos precedentes, e os frutos dessa riqueza se manifestavam agora nas artes plásticas, na literatura, na filosofia. Florença era então uma república, administrada pelos seus notáveis, pelas ligas e corporações de ofício. Seus governantes, os chanceleres, eram homens cultos e pragmáticos, e foram eles que empreenderam o movimento de reconstrução da cidade e de busca de uma nova identidade. Um desses chanceleres do séc. XV, Leonardo Bruni,7em 1428 compara Florença com Roma e Atenas, e é um grande defensor dos studia humanitatis, as humanidades, no lugar das questões teológicas e filosóficas da escolástica. A grande arte renascentista é inicialmente a arquitetura, que realiza o projeto de reconstrução física da cidade. Felipe Brunelleschi e Leon Battista Alberti são os arquitetos que criam os edifícios, capelas, prédios públicos, obras de arte que maravilham os visitantes de Florença até hoje. A tradição artística renascentista tem aí o seu berço. Trata-se de uma arte voltada para o homem, o homem comum florentino, artesão, artífice, cidadão, e não o senhor feudal medieval ou o alto dignitário da Igreja. É nesse momento que são retratadas pela primeira vez as cenas domésticas e os comerciantes burgueses, patronos dos artistas; os palácios e igrejas inspiram-se nas linhas geométricas da arquitetura clássica. Não temos mais apenas as estátuas dos santos que encontramos nas catedrais góticas, monumentos ao divino, ou figuras de reis e príncipes. Mesmo os retratos dos santos e figuras religiosas adquirem proporções humanas, como o Davi, o São Marcos e o São Jorge do grande escultor Donatello. O retrato mais famoso desse período, a Mona Lisa de Leonardo da Vinci (c.1503), representa apenas a esposa do comerciante Giocondo que o encomendou ao artista.
Valoriza-se o corpo humano como dotado de uma beleza própria que se expressa em sua proporção e em suas linhas harmoniosas, o que corresponde nas artes plásticas ao ideal da dignidade humana, a que nos referimos acima.
O humanismo também se expressou na literatura e na filosofia. Tradicionalmente considera-se o florentino Francesco Petrarca (1304-74) como
o primeiro humanista, ou o precursor desse movimento. Vimos acima (II. l) que é com Petrarca que se origina a visão do período medieval como “idade das trevas”. Petrarca não foi propriamente um filósofo, mas um poeta, um dos primeiros a escrever poemas em língua italiana, a defender a necessidade de retomada dos clássicos, sobretudo de Cícero, a valorizar a oratória e a retórica, a moral e a política, temas centrais na obra de Cícero, e a rejeitar as especulações metafísicas e teológicas dos medievais. Por outro lado, Petrarca foi também autor de tratados em latim e amigo de papas e cardeais. É essencialmente um homem de um período de transição, assim como o também florentino Dante Alighieri (1265-1321), que escreve sua Divina comédia em italiano, inaugurando o assim chamado stil nuovo, o “novo estilo”; que se refere aos personagens da política de sua cidade, que se inspira no poeta romano Virgílio, mas que ainda conserva a temática religiosa e a visão hierárquica medieval em suas obras.
Um dos principais pontos de partida do humanismo foi o Grande Concílio Ecumênico que se realizou em Florença em 1431, sob a inspiração de Cosme de Médici, seu governante, visando aproximar a Igreja católica romana da Igreja ortodoxa grega, ou seja, o mundo europeu ocidental do Império Bizantino, o grande herdeiro da Roma imperial e da cultura grega, agora decadente e ameaçada pelos turcos.8 O imperador bizantino João Paleólogo compareceu pessoalmente levando consigo teólogos e filósofos como Bessarion e Gemisto. O concílio não foi bem-sucedido, mas intensificou o fluxo de especialistas gregos para o Ocidente, o que se deu até a queda de Constantinopla (1453). Várias obras de Platão, Aristóteles e de outros filósofos e poetas foram traduzidas para o latim, discutidas e reinterpretadas. Cosme de Médici foi um grande colecionador de manuscritos e criou a Biblioteca de são Marcos para conservá-los. A invenção da imprensa por Gutenberg, na Alemanha, tornou possível logo em seguida a edição e divulgação de muitas dessas obras.
Sob a influência de Gemisto, um grande especialista em Platão – do qual se considerava a própria reencarnação, autodenominando-se “Pleton” –, cria-se em Florença a Academia Platônica, ou Academia Florentina, sob o patrocínio de Cosme, que entrega sua direção a Marsílio Ficino, um dos principais humanistas renascenistas. Nela se reuniram alguns dos mais importantes pensadores, artistas e políticos dessa época, de Lorenzo de Médici, sucessor de Cosme, a Michelangelo. Essa academia servirá de modelo a muitas outras criadas em seguida. Procurava-se assim reviver o ambiente artístico, filosófico e cultural do que se imaginava, ou idealizava, ser o período clássico greco-romano. É nesse momento que voltam a entrar em cena autores muito esquecidos durante o período medieval e pelos quais o cristianismo não tivera grande interesse. Traduzem-se para o latim e reeditam-se (pelo humanista Ambrogio Traversari, 1430) as Vidas dos filósofos de Diógenes Laércio (séc. III), abrindo caminho para a retomada do estudo e da discussão de muitos filósofos gregos, principalmente
estoicos, epicuristas e céticos.
Embora a escolástica, como dissemos, não tenha desaparecido e preservasse ainda sua influência, o humanismo representa o surgimento de uma nova alternativa de pensamento, um novo estilo e uma nova temática. Mesmo as questões religiosas recebem um tratamento diferente, como na Teologia platônica de Marsílio Ficino, que se inspira nos neoplatônicos Plotino e Proclo para tratar de questões como a Santíssima Trindade. A lógica aristotélica, identificada com as sutilezas dos argumentos escolásticos e a defesa dos dogmas, dá lugar a um interesse maior pela retórica, pela gramática e pela dialética, vista como arte de argumentar em público, discutir questões políticas e refutar os adversários. Lorenzo Valla (1407-57), um dos mais influentes humanistas desse período, foi um filólogo que discutiu a interpretação de textos clássicos, um especialista em retórica e oratória, adversário da lógica aristotélica, e defensor de uma moral inspirada no epicurismo contra o que considerava a versão superficial do estoicismo adotada por muitos nessa época.
Talvez o que melhor ilustre a importância da redescoberta dos clássicos pelo humanismo renascentista e do desenvolvimento de uma interpretação desses pensadores independente da feita pela escolástica se encontre no célebre afresco de Rafael A Escola de Atenas, pintado em 1510 no Vaticano para o papa Júlio II. O afresco reúne os mais importantes filósofos gregos da Antiguidade, tendo ao centro as figuras de Platão, que aponta para o alto e segura o texto do Timeu, e de Aristóteles que aponta para o chão e tem em suas mãos a Ética. Os filósofos e sábios se dividem em dois grupos que representam, por um lado, a tendência à abstração e à espiritualidade, Pitágoras e Parmênides, p.ex., próximos a Platão, e da estátua de Apolo; e por outro lado, os que representam o interesse pelas coisas práticas e pela ciência natural, p.ex., Euclides e Cláudio Ptolomeu, próximos a Aristóteles. Rafael situou a si mesmo e a seu mestre Leonardo da Vinci do lado de Aristóteles, talvez porque Platão desvalorizasse as artes plásticas como meras cópias do real. É curioso que esse afresco se encontre na Stanza della Segnatura, uma sala usada pelo Papa para assinar decretos, e não represente, na imagem central, santos ou teólogos, os padres da Igreja ou os apóstolos, mas pensadores pagãos.
O humanismo teve igualmente uma grande importância na política. Erasmo de Rotterdam (1466-1533) e Thomas Morus (1478-1535) preocuparam-se em aplicar os princípios da virtude inspirados na moral estoica e epicurista – a ética do equilíbrio e da moderação – no campo da política. Ao mesmo tempo, enquanto conselheiros dos reis – Morus chegou a chanceler de Henrique VIII da Inglaterra e Erasmo foi autor de um manual, A educação de um príncipe cristão (1516), dedicado ao futuro imperador Carlos V –, preocuparam-se em preservar a independência e liberdade de pensamento, o que custou a Morus sua própria vida, executado por ordem do rei. O elogio da loucura (1511) de Erasmo
questiona, em um estilo profundamente irônico, o racionalismo estéril da escolástica aristotélica com seus silogismos e demonstrações, defendendo uma sabedoria intuitiva e natural. A utopia (1516) de Thomas Morus, uma das obras mais célebres e influentes dessa época, usa também de ironia para formular a imagem de um Estado ideal, em que não há propriedade privada, defendendo a tolerância religiosa, criticando o autoritarismo dos reis e da Igreja e favorecendo a razão e a virtude naturais. A rejeição da tradição escolástica, do saber adquirido, da autoridade imposta pelos costumes e pela hierarquia, em favor de uma recuperação do que há de virtuoso e espontâneo na natureza humana individual, ponto de partida de uma nova ordem, é parte central do ideário humanista e se encontra expresso magistralmente na obra desses dois autores. Essa visão do homem e da sociedade, da moral e da política, será uma das bases da discussão filosófica da modernidade e reaparecerá, sob diferentes formulações, de Montaigne a Rousseau, de Hobbes aos iluministas.
Contudo, o pensador político mais original e influente dessa época foi sem dúvida o florentino Nicolau Maquiavel (1469-1527), autor de um dos grandes clássicos da teoria política, O príncipe (1513, publicado em 1532). Maquiavel foi membro da chancelaria de Florença, onde ganhou experiência política, e pôde observar as práticas de seus contemporâneos. Foi no exílio que redigiu O príncipe, dedicado a Lorenzo de Médici, a quem pretende aconselhar na arte de assegurar e manter o poder político. Desenvolve uma análise histórica de diferentes situações em que os governantes se apossaram do poder ou o perderam, e sua preocupação é em grande parte pragmática e empírica, separando assim radicalmente a política da moral. O governante deve ser implacável em seu objetivo de exercer o poder, e este exercício eficaz do poder justifica a si mesmo. Sua principal qualidade é a virtú, que nada tem em comum com as virtudes cristãs, como a piedade e a humildade, mas, ao contrário, pressupõe coragem, habilidade e persistência. Devido ao caráter por vezes amoral de seus conselhos, a obra causou escândalo, dando origem ao termo depreciativo “maquiavelismo”, e chegando a ser considerada irônica por alguns. Hoje tem sido reavaliada, sobretudo dada sua importância enquanto análise do poder como um fato político, independente de questões morais, e levando-se em conta como critério decisivo a sua eficácia.
O mais importante pensador do que poderíamos considerar a segunda geração de humanistas foi sem dúvida o francês Michel de Montaigne (1533-95). (Voltaremos a Montaigne em III. 1.E.) Montaigne, autor dos célebres Essais (Ensaios), um grande estilista da língua francesa e um dos criadores do ensaio como gênero literário, representa sobretudo o humanista enquanto individualista: o homem culto, sensível e equilibrado que lança um olhar crítico sobre o mundo que o cerca e reflete sobre ele de forma pessoal, apresentando seus pensamentos como fruto de uma experiência, sem nenhuma pretensão sistemática ou teórica.
De família influente na política e nos negócios na cidade de Bordeaux, em 1571 Montaigne decide retirar-se para uma propriedade sua e dedicar-se a escrever seus “ensaios”, embora posteriormente tenha retomado a vida pública vindo a ser prefeito de sua cidade e, devido a seu prestígio, negociador político entre os partidos dos católicos e protestantes então em guerra civil na França. Os Ensaios, publicados (1595) em edição completa após a sua morte, e em partes a partir de 1580, não têm um tema central, mas consistem em pensamentos, frequentemente digressões, em torno das questões que lhe parecem importantes, desde as lutas religiosas até a descoberta da América,9desde críticas à escolástica até a elaboração de um ponto de vista filosófico pessoal, influenciado pelo ceticismo antigo, mas também pelo estoicismo e pelo epicurismo.
C. A DESCOBERTA DO NOVO MUNDO
A descoberta do Novo Mundo, cujo marco inaugural é tradicionalmente 1492, a chegada de Cristóvão Colombo às Antilhas, contribui decisivamente para o descrédito e a perda de autoridade da ciência antiga cinquenta anos antes do questionamento da cosmologia ptolomaica por Copérnico. Revela a falsidade da geografia antiga, da imago mundi da tradição, desde a questão sobre a verdadeira dimensão da Terra até o desconhecimento dos novos territórios – a ideia de novo mundo precede assim a da ciência nova (termo efetivamente empregado por Galileu). Em consequência disso, muita coisa teve de ser inteiramente reformulada, da geografia de Strabo (séc.I) e de Cláudio Ptolomeu (séc.II) até a Imago mundi do cardeal Pierre d’Ailly, publicada em 1410 e uma das leituras favoritas de Colombo.
O erro dos modernos, contudo, não foi num primeiro momento muito diferente do dos antigos; ou seja, desconheceram de início aonde haviam de fato chegado – seriam as Índias, ou mesmo o Japão? – e o que haviam de fato descoberto ou encontrado. Isso foi preservado na denominação “Novo Mundo”, uma terra ainda sem nome, incógnita, posteriormente substituída por “Índias Ocidentais”, até a denominação definitiva, América (1507), devido aos relatos de Américo Vespúcio que tiveram ampla divulgação na Europa.
À falsidade da geografia antiga acrescenta-se o desconhecimento da natureza: tanto da flora e da fauna, das novas terras, com árvores imensas e animais monstruosos – não encontráveis, por exemplo, na Historia naturalis de Plínio (ano 77), então ainda a principal referência na área –, quanto do ser humano. Junte-se ainda o descrédito e a falta de confiabilidade da ciência antiga e tem-se a constatação da necessidade de produção de um novo conhecimento, uma nova ciência natural sobre o novo mundo. Isso se justifica sobretudo devido a dois fatores: 1) a perda de autoridade da ciência antiga, que nada diz sobre a nova
realidade, por omissão ou então devido ao conflito entre as antigas doutrinas; e 2) a inconfiabilidade das narrativas antigas sobre as regiões desconhecidas (como as da Atlântida, das Ilhas Afortunadas ou das Terras do Prestes João), que em nada correspondem ao encontrado, revelando a inutilidade da tradição para o conhecimento da nova realidade. Para Montaigne, “a narrativa de Aristóteles não está de acordo com nossas terras novas” (“Os canibais”, Ensaios, I, 31).
Cabe um destaque especial ao desconhecimento sobre o ser humano, ou seja, sobre os habitantes nativos dessas terras, sua natureza e sua origem. É importante a esse propósito enfatizar que o descobrimento do Novo Mundo se dá no contexto do humanismo renascentista dos séculos XV-XVI, da valorização do ser humano, a dignitas hominis, e da discussão sobre a natureza humana e sua suposta universalidade, quando essa problemática adquire uma centralidade não encontrada no contexto histórico anterior, da escolástica medieval.
Esse é o momento de valorização do indivíduo empreendedor, que desafiando perigos e preconceitos realiza grandes descobertas e feitos. Os navegadores portugueses desde o início do século XV, assim como Colombo, são os grandes exemplos dessa nova concepção de homem que inclui ainda os condottieri italianos, os grandes artistas do Renascimento (de Leon Battista Alberti a Leonardo Da Vinci), os burgueses e comerciantes de Bruges a Florença que geram a grande riqueza dessa época.
Em relação às Américas, uma distinção mais ampla, medieval, tradicional, é necessária: entre os impérios como os dos astecas (México), maias (América Central) e incas (Peru) – que permitiam uma analogia com os impérios antigos dos egípcios, assírios e persas, com seus reis, classe sacerdotal, templos e pirâmides – e as culturas tribais do Brasil e do Caribe, em geral considerados pelos primeiros colonizadores como povos totalmente bárbaros. Estes deviam ser evangelizados e catequizados em uma missão civilizatória; aqueles, os infiéis (em que se enquadram ainda os muçulmanos), deviam ser combatidos e submetidos.
Mas como identificar esses povos diante da total ausência de parâmetros? Seriam as dez tribos perdidas de Israel? Seriam o resultado de outra criação, a dos pré-adamitas, possibilidade discutida em um contexto posterior por nomes como Isaac de la Peyrère (1655)? Seriam seres sem o pecado original? Os povos tribais são representados assim como o puro contraponto do homem europeu, seu outro, seu oposto.
Ressalta-se aí a questão do canibalismo que identifica esses povos de imediato como bárbaros, permitindo assim tratá-los como se quiser, combatendo-os, aprisionando-os, escravizando-os e exterminando-os. A antropofagia é um velho tema, encontrado já em Heródoto, que atribui essa prática aos citas, antigos habitantes da região do mar Negro. O termo “canibalismo” vem de “canibal”, utilizado por Colombo em seus relatos, cuja etimologia é uma corruptela de “carib”, “feroz”. O canibalismo aparece assim como uma acusação, utilizado
contra os caribes por seus rivais nas Antilhas, os aruaques.
O argumento antropológico caracteriza-se sobretudo por um ceticismo acerca da existência de uma natureza humana universal e homogênea, levando a um relativismo cultural e à possibilidade de entender, classificar, categorizar essas diferentes culturas tão radicalmente distintas da europeia.
No caso do Novo Mundo, em que medida é possível recorrer aos padrões cristãos para julgá-los? A questão moral, sobretudo o questionamento da suposta superioridade moral cristã, é levantada por pensadores como Montaigne, num dos mais famosos de seus Ensaios, “Os canibais” (I, 31), e também em “Os coches” (III, 6).
Isso se dá precisamente a partir da década de 1530, no contexto da Reforma protestante, da cisão do cristianismo e das guerras religiosas daí decorrentes. Ocorre também no contexto do tema humanista da miseria hominis, levando no caso à demonização do indígena enquanto bárbaro, selvagem, em um sentido diferente do ser caído e pecador do pensamento medieval; mas ainda em contraste com a dignitas hominis do bom selvagem, do homem natural, integrado à natureza, epicúreo. Montaigne (I,31), buscando inspiração em Tácito no relato da guerra contra os germânicos, admirados por sua força e coragem, levanta a questão do ponto de vista dos indígenas, mostrando que eles nos ensinam uma lição sobre nós mesmos, são como um espelho, apontam nossas fragilidades, expõem nossa inferioridade. Os indígenas do Brasil fornecem assim, a Montaigne, um pretexto para a crítica da própria sociedade francesa de sua época.
Essa perplexidade diante dos indígenas e a dificuldade de entendê-los aparecem em um relato como o que se segue, atribuído a Américo Vespúcio:
Esta figura mostra-nos a gente e a ilha descoberta pelo cristianíssimo rei de Portugal ou por seus súditos. Estas pessoas são nuas, belas e de cor parda, bem-feitas de corpo. Sua cabeça, pescoço, braços, partes íntimas e os pés dos homens e mulheres são ligeiramente cobertos de penas. Os homens também usam na face e no peito muitas pedras preciosas. Ninguém possui nada, mas todas as coisas são comuns. E os homens tomam por esposa as que mais lhes agradam, sejam elas suas mães, irmãs ou amigas, pois não fazem nenhuma distinção. Lutam mutuamente, comem-se uns aos outros, mesmo aqueles que massacram, e penduram a carne sobre o fumo. Vivem 150 anos. E não possuem governo.
Pode-se observar nesse texto o contraponto entre o indígena e o homem europeu, desde as características físicas, como a nudez e as penas no corpo (uma óbvia confusão com adereços de penas), até o estilo de vida: o comportamento sexual, o canibalismo e a longevidade. A ausência de propriedade privada de um governo é destacada. Não importa que toda essa descrição seja pouco precisa e
não corresponda aos hábitos e características desses povos, posteriormente melhor conhecidos. As pedras preciosas, por exemplo, mencionadas no texto, não eram utilizadas por índios da costa do Brasil; não havia promiscuidade sexual, ao contrário: havia tabus sexuais bastante rigorosos, mas a poligamia era frequente; a longevidade mencionada era ilusória, e a ausência de governo simplesmente mostra a dificuldade do europeu de reconhecer como governo qualquer coisa que fosse radicalmente diferente do sistema europeu, pois certamente havia formas de gestão e estruturas de poder dentre os indígenas, bastante estudadas pela antropologia mais recentemente. Na verdade a visão do indígena pelo europeu resulta na fabricação de um ser fantástico, seu oposto mas também seu espelho. Descrevê-lo, procurar compreendê-lo, afinal só é possível recorrendo-se às categorias tradicionais – que, por definição, são inadequadas para isso.
O imaginário europeu busca assim construir uma explicação sobre a natureza desses povos que é essencialmente ambivalente, valorizando ora sua proximidade à natureza, quase como Adão no paraíso, ora sua selvageria e brutalidade, que os aproximam dos animais.
Montaigne esteve presente em Rouen em 1562 quando o jovem rei Carlos IX recebeu alguns indígenas das Américas, e relata que após conhecerem o rei e a corte, e quando interrogados sobre o que tinham visto, os indígenas expressaram surpresa com o fato de homens adultos (a guarda suíça do rei) obedecerem a um menino e não escolherem um comandante entre eles; espantaram-se também com a existência de tanta pobreza e mendicância na França, ao lado do luxo que existia na corte, sem que os pobres se rebelassem (Ensaios, I, 31). Montaigne inverte assim a interpretação tradicional, mostrando que os europeus pareceriam aos indígenas tão bárbaros e de hábitos, valores e práticas tão incompreensíveis quanto eles aos europeus. Não há como julgar uma cultura senão da perspectiva de outra, e a única postura filosoficamente razoável diante disso é a tolerância, que Montaigne prega igualmente no campo dos conflitos religiosos. “Chamamos bárbaro aquilo que não faz parte de nossos costumes” (“Os canibais”).
D. A REFORMA PROTESTANTE
O marco do início da Reforma protestante é tradicionalmente o episódio em que Lutero prega nas portas da igreja de Todos os Santos em Wittenberg suas 95 teses contra os teólogos católicos da universidade e contra o papa Leão X (1517). No entanto, podemos considerar a Reforma de Lutero o ponto culminante de um processo de contestação dos rumos da Igreja católica desde os últimos séculos da Idade Média. A transferência da sede da Igreja para Avignon e a influência dos reis franceses sobre os papas durante esse período em muito contribuíram para a sua perda de autoridade. O envolvimento dos papas nas questões políticas da
época foi também um fator gerador de conflitos. Além disso, o envolvimento político, a necessidade de manter exércitos e de sustentar os estados da Igreja – os territórios governados pelos papas na Itália – fizeram com que a Igreja necessitasse de grandes recursos financeiros, procurando obtê-los através da venda de indulgências e de outros favores a quem se dispusesse a pagá-los. As obras grandiosas patrocinadas pelos papas do Renascimento ilustram bem os custos imensos da Igreja nessa época, seu fausto e seu caráter muitas vezes mundano.
Na realidade, a ideia de “reforma” sempre foi bastante comum no desenvolvimento do cristianismo. Podemos quase dizer que o próprio cristianismo em seu surgimento é uma espécie de movimento de reforma do judaísmo, procurando torná-lo mais autêntico, mais fiel à visão dos profetas e menos submisso a Roma. Durante a Idade Média foram frequentes os movimentos reformistas dentro de ordens religiosas. Era comum um grupo de monges de determinada ordem fundar um mosteiro em que a regra da ordem era observada de forma mais estrita, isto é, “reformada” em alguns aspectos. Os conflitos gerados durante o período em que os papas estiveram em Avignon e no momento de seu retorno a Roma ao final do séc. XIV, o assim chamado “Grande Cisma”, mostraram a necessidade de uma “reforma” da própria Igreja. Para isso foi convocado o Concílio de Constança (1414-18), que, se superou o cisma, não foi bem-sucedido na tarefa de realizar a Reforma.
Durante esse período eram comuns os pregadores em vários países da Europa, inclusive na Alemanha, defendendo a volta a um cristianismo mais simples e mais espiritual. Na Inglaterra, John Wycliffe (1320-84), um teólogo de Oxford, pregou contra Roma, mantendo a necessidade da pobreza do clero e criticando a hierarquia eclesiástica. Wy cliffe traduziu o Novo Testamento e parte do Antigo para o inglês visando torná-lo acessível a todos os fiéis e, apesar de condenado, teve muitos seguidores. Dentre esses se destacou, na Boêmia, Jan Huss (1373- 1415), que foi condenado à fogueira e que, por sua vez, teve influência sobre Lutero.
Martinho Lutero (1483-1546) nasceu em Eisleben, na Alemanha, estudou Direito e entrou para a ordem dos agostinianos, formando-se em teologia em Wittenberg. Em uma visita a Roma em 1510 ficou chocado com a corrupção da sede da Igreja. A partir daí começou a defender a necessidade de uma reforma; sua posição vai se radicalizando pouco a pouco, e ele passa de um pregador da necessidade de reformas na Igreja a líder da Reforma. Condenado por Roma, recebe a proteção do imperador Frederico da Alemanha. Em 1520 publica seu Manifesto à nobreza da nação alemã e A Igreja no cativeiro da Babilônia, e em 1522 sua tradução da Bíblia para o alemão (concluída em 1534), visando torná-la mais acessível. Em seu tratado De servo arbitrio (1525), nega a liberdade individual, fazendo com que muitos humanistas, inclusive Erasmo, inicialmente
simpático à Reforma, se afastem dele.
O protestantismo, movimento de oposição a Roma, difunde-se por outras regiões da Europa, com Ulrich Zwingli (1484-1531) na Suíça e posteriormente com Calvino (1509-64) em Genebra. Na Alemanha há levantes camponeses liderados pelo protestante Thomas Müntzer, violentamente reprimidos. O imperador Carlos V combate o protestantismo e condena Lutero na Dieta de Worms, porém muitos nobres alemães aderem à Reforma, inclusive por motivos políticos, como tentativa de preservar sua autonomia e evitar a influência política da Igreja.
A ruptura provocada pela Reforma é um dos fatores propulsores da modernidade, embora, segundo alguns intérpretes de seu pensamento, sob muitos aspectos Lutero se aproxime mais da teologia medieval agostiniana. Porém, a defesa da ideia de que a fé é suficiente para que o indivíduo compreenda a mensagem divina nos textos sagrados, a assim chamada “regra da fé” – não necessitando da intermediação da Igreja, dos teólogos, da doutrina dos concílios –, representa na verdade a defesa do individualismo contra a autoridade externa, contra o saber adquirido, contra as instituições tradicionais, todos colocados sob suspeita.
Lutero combate a escolástica, sobretudo a visão aristotélico-tomista, as provas da existência de Deus, o racionalismo. Sua concepção teológica baseia-se em uma interpretação da doutrina de santo Agostinho sobre a luz natural (ver II. 2.B), que todo indivíduo tem em si e que lhe permite entender e aceitar a Revelação. Inspira-se também em são Paulo: “o justo viverá pela fé” (Romanos, 1, 17). O critério de validade da interpretação das Escrituras é portanto a “regra da fé”. Afirma Lutero:
[…] vi que as opiniões tomistas, mesmo que aprovadas pelo papa e pelos concílios, continuam sendo apenas opiniões e não se tornam artigos de fé, mesmo que um anjo dos céus decidisse ao contrário. Porque aquilo que é afirmado sem a autoridade das Escrituras ou da revelação comprovada
pode ser mantido como uma opinião, mas não há obrigação de se acreditar nisso.10
E, finalmente, reafirma seu novo critério de forma ainda mais dramática quando se recusa a retratar-se diante da Dieta de Worms em 1521:
Vossa Majestade Imperial e Vossas Excelências exigem uma resposta simples. Aqui está ela simples e sem adornos. Amenos que eu seja convencido de estar errado pelo testemunho das Escrituras (pois não confio na autoridade sem sustentação do papa e dos concílios, uma vez que é óbvio que em muitas ocasiões eles erraram e se contradisseram) ou por um raciocínio manifesto eu seja condenado pelas Escrituras a que faço meu
apelo, e minha consciência se torne cativa da palavra de Deus, eu não posso retratar-me e não me retratarei acerca de nada, já que agir contra a própria consciência não é seguro para nós, nem depende de nós. Isto é o que sustento. Não posso fazê-lo de outra forma. Que Deus me ajude. Amém.11
Dois pontos são fundamentais nesta passagem: 1) A recusa por Lutero da autoridade institucional da Igreja (os papas e os concílios) que não é digna de crédito; e 2) a valorização da consciência individual, como dotada de autonomia e de uma autoridade que toma o lugar da Igreja e da tradição, por ser mais autêntica.
Podemos considerar assim que, de um ponto de vista filosófico, a Reforma aparece nesse momento como representante da defesa da liberdade individual e da consciência como lugar da certeza, sendo o indivíduo capaz pela sua luz natural de chegar à verdade (em questões religiosas) e contestar a autoridade institucional e o saber tradicional, posições que se generalizarão além do campo religioso e serão fundamentais no desenvolvimento do pensamento moderno, encontrando-se expressas um século depois em seu mais importante representante, René Descartes. A ênfase dada por Lutero na passagem citada, à consciência, certamente prenuncia a filosofia de Descartes, bem como o espírito crítico característico da modernidade.
Se a discussão em torno da “regra da fé” abre caminho para o problema dos critérios do conhecimento, a discussão acerca do livre-arbítrio e da salvação levanta questões de natureza moral. Para Lutero, a salvação só é possível pela graça divina, e a graça é um dom de Deus, que independe do saber adquirido ou da obediência à autoridade eclesiástica. Rejeita assim a doutrina ética – de inspiração aristotélica e adotada pela escolástica tomista – da virtude adquirida. O esforço humano não desempenha nenhum papel na salvação, já que o homem não pode “comprar sua salvação”, não pode fazer uma “barganha” com Deus, dependendo exclusivamente da graça, um dom divino e, por definição, gratuito. Essa ética tem certamente raízes antiescolásticas e agostinianas, porém entra em contradição com o espírito crítico do homem de fé como leitor da Bíblia e intérprete da palavra de Deus por suas próprias luzes, bem como com a defesa das liberdades civis contra a autoridade institucional defendidas pelo próprio Lutero em seu Da liberdade do homem cristão (1520). Essas contradições, que de certa forma afastam Lutero do espírito do humanismo, ficam claras em sua polêmica com Erasmo, a qual abordaremos adiante (III. 1.E).A Reforma iniciada por Lutero rapidamente difundiu-se pela Europa, refletindo um anseio por autonomia política (por exemplo na Alemanha e nos Países Baixos) e liberdade de pensamento, uma insatisfação com a Igreja católica e com as doutrinas tradicionais. Wittenberg, a “Roma Germânica”, tornou-se o centro do protestantismo, posição ocupada algumas décadas depois por Genebra, a capital
do calvinismo. Em 1527 é criada a primeira universidade protestante em Marburg, seguindo-se outras. Em 1566 o Sínodo de Antuérpia estabelece a Igreja calvinista como religião oficial da República Holandesa, então em guerra com a Espanha. Os protestantes franceses, os “huguenotes”, tornam-se uma importante força política, levando a França à guerra civil. Cria-se na Inglaterra a Igreja anglicana (1534), e a Escócia converte-se ao calvinismo (1560). Em pouco menos de cinquenta anos o panorama político e religioso europeu altera-se profundamente, e a discussão de questões filosóficas, teológicas e doutrinárias relacionadas à Reforma tem um papel fundamental no cenário intelectual da época.12
A Igreja católica inicia uma ofensiva contra o protestantismo: a Contrarreforma. O Concílio de Trento (1545-63) estabelece as bases doutrinárias e litúrgicas do catolicismo, reforça a autoridade do papa e dá à Igreja o perfil que esta terá praticamente até o Concílio do Vaticano II (1962-65). No Concílio de Trento a obra de são Tomás de Aquino é colocada no altar ao lado da Bíblia. A Inquisição ganha nova força, assim como surgem novas ordens religiosas de caráter militante como a Companhia de Jesus de santo Inácio de Loy ola (1534). No século seguinte, a Guerra dos Trinta Anos (1618-48), de que Descartes participa, opõe católicos e protestantes e espalha-se por toda a Europa.
A ética protestante, principalmente calvinista, ao considerar os protestantes como predestinados e valorizar a liberdade individual, a livre iniciativa e a austeridade, terá grande importância no desenvolvimento econômico da Europa, sobretudo em regiões como os Países Baixos e a Inglaterra, permitindo a acumulação do capital que, reinvestido por sua vez nos grandes empreendimentos comerciais e mercantis, como a Companhia das Índias, levará ao surgimento de uma classe burguesa detentora de riqueza e de poder político.13
E. A REVOLUÇÃO CIENTÍFICA
A revolução científica moderna tem seu ponto de partida na obra de Nicolau Copérnico, Sobre a revolução dos orbes celestes (1543),14em que este defende matematicamente (através de cálculos dos movimentos dos corpos celestes) um modelo de cosmo em que o Sol é o centro (sistema heliocêntrico), e a Terra apenas mais um astro girando em torno do Sol, rompendo deste modo com o sistema geocêntrico formulado no séc. II por Cláudio Ptolomeu em que a Terra se encontra imóvel no lugar central do universo (cuja origem era o Tratado do céu de Aristóteles, embora com importantes diferenças). Representa assim um dos fatores de ruptura mais marcantes no início da modernidade, uma vez que ia contra uma teoria estabelecida há praticamente vinte séculos, constitutiva da própria maneira pela qual o homem antigo e medieval via a si mesmo e ao
mundo a que pertencia.
Na verdade, podemos considerar que o interesse pelas ciências naturais se inicia com a reintrodução na Europa ocidental, a partir do final do séc. XII, da obra de Aristóteles e de seus intérpretes árabes. Embora a revolução científica moderna inspire-se muito em Platão, pela valorização da matemática na explicação do cosmo, e nos pitagóricos, que já teriam antecipado o modelo heliocêntrico proposto por Copérnico (segundo ele próprio admite),15 Aristóteles é o responsável pela ênfase na pesquisa experimental e na importância da investigação da natureza. Portanto, quando os modernos rejeitam o aristotelismo, esta rejeição se explica pelo modelo geocêntrico de cosmo adotado pelos aristotélicos e pelo uso, talvez mesmo o abuso, escolástico da lógica aristotélica na demonstração de verdades universais e necessárias, em detrimento da observação e da experiência. Por esse motivo, a contribuição de Aristóteles acaba não sendo devidamente reconhecida.
Já no séc. XIII alguns filósofos se distanciaram da física e da astronomia de Aristóteles, principalmente quanto à sua explicação de movimento, procurando alternativas e recorrendo à matemática. Podemos mencionar nessa linha Roberto Grosseteste (c. 1175-1253), Roger Bacon (1214-92) e Nicolau de Oresme (c.1323-82), bem como a chamada escola franciscana do Merton College de Oxford (séc. XIV). Roberto Grosseteste destaca-se como um pensador original, valorizando a observação da natureza e a importância da geometria. Alguns de seus tratados, como o De luce (Sobre a luz), De sphaera (Sobre a esfera) e o Hexaëmeron (Sobre os seis dias da Criação), são bastante inovadores do ponto de vista da discussão cosmológica.
Entretanto, a cosmologia não poderia ser considerada independentemente de seus pressupostos metafísicos e teológicos, o que muitas vezes gerava conflitos. Ptolomeu, no Almagesto (séc. II), e os astrônomos de Alexandria já haviam criticado a concepção aristotélica de cosmo, rompendo com a visão de um céu constituído por esferas homocêntricas (tendo um centro comum). Mostraram que esse modelo não “salvava os fenômenos”, ou seja, não representava adequadamente aquilo que as observações astronômicas e os cálculos matemáticos nos revelavam sobre os céus. Porém, o modelo aristotélico era estritamente teórico, fundamentado em sua concepção de matéria e em sua visão de um cosmo hierárquico. As esferas homocêntricas eram uma exigência da própria ideia de um cosmo harmonioso e perfeito. O modelo ptolomaico16e alexandrino dos epiciclos (esferas excêntricas, com diferentes centros), alternativo ao de Aristóteles, salvava os fenômenos, mas ia contra esse ideal de perfeição.
São Tomás de Aquino (Suma teológica I, questão 32, art. 1), por exemplo, defende Aristóteles contra os astrônomos de Alexandria, sustentando que, enquanto esses astrônomos baseavam suas hipóteses em observações e cálculos,
a teoria aristotélica era deduzida de primeiros princípios, sendo, portanto, mais verdadeira. Rejeita assim a verificação de uma hipótese como um argumento conclusivo para sua aceitação, argumentando que a verificação, por definição limitada e imperfeita, não pode suplantar os princípios metafísicos estabelecidos racionalmente, nem tampouco as verdades universais e necessárias deduzidas logicamente. Segundo essa visão, é mais importante salvar a física aristotélica – e portanto seu sistema como um todo, sua unidade e coerência interna – do que salvar os fenômenos.
Uma das principais transformações do ponto de vista da metodologia científica está precisamente na inversão dessa ordem de prioridades. A ciência moderna surge quando se torna mais importante salvar os fenômenos e quando a observação, a experimentação e a verificação de hipóteses tornam-se critérios decisivos, suplantando o argumento metafísico. Trata-se, no entanto, como quase sempre na história das ideias, de um longo processo de transição, muito mais do que de uma ruptura radical. Ao longo desse processo, desde os franciscanos do Merton College (séc. XIV) até Galileu (1564-1642) e Newton (1643-1727), temos diferentes pensadores, filósofos, teólogos, matemáticos, astrônomos, que contribuíram com diferentes ideias, levando finalmente às profundas transformações na visão científica do séc. XVII, tanto em relação ao modelo de cosmo quanto aos aspectos metodológicos da ciência moderna. Examinaremos em seguida, brevemente, algumas das principais contribuições que levam a isso.
O tratado de Copérnico Sobre a revolução dos orbes celestes foi motivado por uma consulta feita pelo papa Leão X e pelo Concílio de Latrão, visando a reforma do calendário juliano, estabelecido pelos romanos, que ainda vigorava na época. Sentindo a necessidade de refazer os cálculos de Ptolomeu sobre o movimento do Sol e da Lua, Copérnico desenvolve suas pesquisas e propõe a hipótese heliocêntrica, recorrendo, como ele mesmo indica, às teorias dos antigos pitagóricos. Na verdade, o modelo heliocêntrico copernicano rompe com o sistema aristotélico-ptolomaico em um aspecto fundamental que é a adoção do Sol, e não da Terra, como centro, porém conserva ainda a concepção de um cosmo fechado, tendo como limite a esfera das estrelas fixas, típico da visão antiga. Será apenas progressivamente que a ideia de um universo infinito será incorporada à ciência moderna.
Podemos considerar que são fundamentalmente duas as grandes transformações que levarão à revolução científica: 1) Do ponto de vista da cosmologia, a demonstração da validade do modelo heliocêntrico, empreendida por Galileu; a formulação da noção de um universo infinito, que se inicia com Nicolau de Cusa e Giordano Bruno; e a concepção do movimento dos corpos celestes, principalmente da Terra, em decorrência do modelo heliocêntrico; 2) do ponto de vista da ideia de ciência, a valorização da observação e do método experimental, i.e., uma ciência ativa, que se opõe à ciência contemplativa dos
antigos; e a utilização da matemática como linguagem da física, proposta por Galileu sob inspiração platônica e pitagórica e contrária à concepção aristotélica. A ciência ativa moderna rompe com a separação antiga entre a ciência (episteme), o saber teórico, e a técnica (téchne),17o saber aplicado, integrando ciência e técnica e fazendo com que problemas práticos no campo da técnica levem a desenvolvimentos científicos, bem como com que hipóteses teóricas sejam testadas na prática, a partir de sua aplicação na técnica.
A revolução científica moderna resulta portanto da conjugação desses fatores, para o que contribuíram diferentes pensadores ao longos dos séculos XV a XVII, sendo que, em certos aspectos, rompe de fato decisivamente com a ciência antiga, mas em outros inspira-se ainda em teorias clássicas. Só com Newton, praticamente já no séc. XVIII, é que teremos a formulação de uma ciência físico-matemática plenamente elaborada em um sistema teórico.
O modelo heliocêntrico de cosmo foi inicialmente proposto por Copérnico, baseado, segundo suas próprias palavras, nos antigos pitagóricos. De início, foi proposto apenas como hipótese, o que o tornava mais facilmente aceitável. Mas não foi aceito de imediato, apesar da maior precisão dos cálculos de Copérnico, talvez porque abalasse as crenças mais profundas do homem antigo e medieval como a ideia da Terra fixa no centro do universo. É curioso, por exemplo, que o grande astrônomo dinamarquês Ty cho Brahe (1546-1601) chegue a propor um sistema intermediário, o sistema ticônico, em que a Terra permanece no centro do cosmo, o Sol gira em torno da Terra e os planetas, por sua vez, giram em torno do Sol. Embora essa imagem soe absurda hoje, ela mostra como de fato as mudanças foram progressivas. É apenas com Galileu, já no século XVII, que se dá o que podemos considerar a demonstração empírica do modelo copernicano, graças ao uso do telescópio. Inicialmente usado para fins militares, o telescópio, inventado nos Países Baixos e aperfeiçoado por Galileu, é dirigido por ele aos céus. Galileu é capaz de observar então as luas do planeta Júpiter, que apresentavam, segundo ele, uma espécie de modelo em miniatura do sistema solar. Quando Galileu é interpelado pela Igreja em Roma e sugere que os cardeais olhem através de seu telescópio, ouve como resposta, na linha dos argumentos de são Tomás, que nenhuma verificação empírica pode suplantar as antigas doutrinas, porque a observação é limitada e imperfeita.
Como dissemos acima, Copérnico ainda adota a ideia de um cosmo fechado e limitado pela última das esferas, a esfera das estrelas fixas. A ideia de um cosmo infinito, de um universo aberto,18tem na verdade uma origem mais metafísica do que estritamente física ou astronômica. Seu ponto de partida se encontra em Nicolau de Cusa, um cardeal alemão do Renascimento, que em sua obra de inspiração neoplatônica De docta ignorantia (Sobre a sábia ignorância), de 1440, introduz a ideia de um universo sem limite, indeterminado, em suas palavras,
immensum, bem como sem centro e sem circunferência. Giordano Bruno, um admirador de Copérnico, leva adiante essa ideia, propondo em seu De l’Infinito universo e mondi (Sobre o universo infinito e os mundos), de 1583, a concepção de um universo infinito, influenciado pelo neoplatonismo. Em 1600 Giordano Bruno é queimado na fogueira como herege. Em 1616 a Inquisição condena a obra de Copérnico. Um dos argumentos utilizados é que, nas Escrituras, Josué pede a Jeová que faça o Sol parar no céu até a derrota de seus inimigos (Josué, 10, 11-13); ora, se o Sol parou, é porque se movia em torno da Terra. Também no Salmo 93 é dito que “o mundo permanece imóvel”.
Em 1609 o astrônomo alemão Johannes Kepler, um discípulo de Ty cho Brahe, defende em sua Astronomia nova sive physica coelestis (Nova astronomia ou física celeste) a ideia de que o universo é regido por leis matemáticas, embora Kepler se inspirasse em uma concepção platônico-pitagórica. É na verdade Galileu em seu Il saggiatore (O ensaiador) quem diz: “A natureza é um livro escrito em linguagem geométrica; para compreendê-la é necessário apenas aprender a ler esta linguagem.” Este parece ser o ponto de partida do mecanicismo como modelo físico de universo. O mecanicismo vê a natureza como um mecanismo, constituído de elementos que, como as engrenagens de um relógio, a fazem funcionar impulsionados por uma força externa. A função da ciência é descrever a natureza desses elementos e as leis e princípios que explicam seu funcionamento.
Há contudo uma diferença entre a concepção que começa a ser desenvolvida por Galileu e a que encontramos ainda em Kepler, para quem o recurso à matemática parte de uma inspiração platônica e pitagórica, a matemática representando a perfeição formal. Para Galileu, dizer que a matemática é a linguagem da natureza significa dizer que a nova física deve tratar o espaço como abstrato e o movimento como uma relação entre dois pontos no espaço, o que pode ser expresso através de uma equação. Por outro lado, Kepler já havia descrito as órbitas dos planetas como elípticas, enquanto Galileu ainda postulava a ideia de órbitas circulares. Isso mostra como a posição dos diferentes cientistas da época era ambivalente e como um mesmo cientista poderia adotar posições avançadas acerca de certas questões e tradicionalistas acerca de outras.
Podemos considerar Galileu de certa forma o ponto de chegada de um processo de transformação da antiga visão de mundo e de ciência inaugurada dois séculos antes no início do Renascimento. Galileu sintetiza, sistematiza, elabora e desenvolve a contribuição desses diferentes pensadores em uma obra genial – que terá grande influência em seu tempo e no desenvolvimento da física a partir daí –, mas está longe de ser o criador original e solitário da nova ciência. Mesmo a ideia de uma ciência experimental já era corrente na época do Renascimento, inclusive em outros campos do saber, além da física e da astronomia.
Talvez um dos melhores exemplos desse interesse pela técnica e pela ciência experimental se encontre em Leonardo da Vinci (1452-1519). O grande pintor italiano foi um inventor de objetos mecânicos, desenhando modelos de máquinas e objetos voadores, além de demonstrar um interesse profundo por anatomia e biologia, ilustrando, por exemplo, o processo da gestação desde a inseminação até o desenvolvimento do feto no útero. Este interesse pela biologia e pelas artes médicas tem seu ponto alto no maior anatomista da época, André Vesalius, cuja obra De humanis corporis fabrica (A estrutura do corpo humano), detalhadamente ilustrada, foi publicada no mesmo ano do tratado de Copérnico (1543). Outras obras importantes dessa época no campo da técnica são a Pirotechnia de Biringuccio (1480-1539), um tratado de metalurgia, e De re metallica de Georg Bauer (1490-1555).
O humanismo renascentista havia colocado o homem no centro de suas preocupações éticas, estéticas, políticas. A Reforma protestante valorizara o individualismo e o espírito crítico, bem como a discussão de questões éticas e religiosas. A revolução científica pode ser considerada uma grande realização do espírito crítico humano, com sua formulação de hipóteses ousadas e inovadoras e com sua busca de alternativas para a explicação científica; porém, ao tirar a Terra do centro do universo e ao trazer para o primeiro plano a ciência da natureza, se afasta dos temas centrais do humanismo e da Reforma, sofrendo em muitos casos a condenação tanto de protestantes quanto de católicos. O homem deixa de ser o microcosmo que reflete em si a grandeza e a harmonia do macrocosmo, as novas teorias dissociando radicalmente a natureza do universo da natureza humana.
É significativo, portanto, que Descartes, talvez o filósofo mais importante e mais representativo desse período, dedique toda a sua obra quase que exclusivamente à questão da possibilidade do conhecimento e da fundamentação da ciência, defendendo as novas teorias científicas e o modelo de ciência que pressupõem.
Lemos nos estatutos da Royal Society inglesa, redigidos em 1663 pelo cientista Robert Hooke, inventor da bomba a vácuo: “O objetivo da Royal Society é melhorar o conhecimento das coisas naturais e de todas as artes úteis, manufaturas, práticas mecânicas, engenhos e invenções, por meio de experiências (sem se imiscuir em teologia, metafísica, moral, política, gramática, retórica ou lógica).”
Isso revela mais uma vez como o pensamento moderno em sua gênese não constitui um todo orgânico, um pensamento uniforme ou homogêneo, sendo o resultado de diferentes contribuições, muitas vezes contraditórias, de pensadores em diversos campos do saber. Forma-se assim um mosaico que, visto a distância pelo olhar retrospectivo da história da filosofia, apresenta uma imagem que possui maior unidade do que se examinado de perto, quando o encaixe das peças
não é tão nítido.
Devemos também ser cautelosos ao considerar a ciência moderna como o triunfo da racionalidade contra o obscurantismo medieval. Em muitos aspectos a escolástica medieval, com sua inspiração aristotélica e seu recurso à lógica, foi mais racionalista do que a ciência moderna. As novas teorias científicas acerca do cosmo, da natureza da matéria, do infinito e da importância da matemática tiveram frequentemente uma inspiração pitagórica e neoplatônica, em alguns casos até mesmo mística. Kepler tinha um grande interesse pela astrologia e fazia horóscopos; Descartes era Rosacruz; o próprio Newton interessava-se por astrologia e alquimia. O grande alquimista e astrólogo Paracelso (1493-1541) foi contemporâneo dos humanistas. O melhor exemplo disso foi o enorme sucesso nesse período do Corpus hermeticum, uma série de escritos gregos considerados um pouco posteriores aos escritos de Moisés, de caráter místico, atribuídos a Hermes Trimegistos (“Hermes Três Vezes Grande”), uma encarnação do deus egípcio Thot. Trata-se de textos de caráter místico, que contêm uma sabedoria oculta e combinam questões cosmológicas e teológicas em uma linguagem poética e oracular. Esses textos foram traduzidos por Marsílio Ficino, o grande humanista tradutor de Platão, e serviram em parte de inspiração às novas cosmologias e à ruptura com o espírito da escolástica. Apenas em 1617 o erudito Isaac Casaubon revelou serem esses textos apócrifos, pertencendo a um período bastante posterior, já dos primeiros séculos do cristianismo, combinando elementos cristãos, gnósticos e fontes anteriores. De fato, o rompimento com esse pensamento místico, iniciático e ocultista só ocorrerá com o Iluminismo do séc. XVIII, de caráter racionalista e secular, valorizando a experimentação e o materialismo e criticando a superstição.
F. A RETOMADA DO CETICISMO ANTIGO
É curioso que o ceticismo antigo, tanto em sua vertente pirrônica quanto acadêmica, tenha sido praticamente ignorado no período medieval, e ressurgido de maneira tão forte no início do pensamento moderno, podendo mesmo ser considerado uma das correntes filosóficas mais importantes e influentes da época, com uma contribuição decisiva para a formação desse pensamento, como demonstrou Richard Popkin.19
O interesse pelo ceticismo antigo é retomado no Renascimento como parte do movimento de volta aos clássicos. A Idade Média havia em grande parte ignorado os céticos devido à refutação do ceticismo por santo Agostinho em seu diálogo Contra acadêmicos, embora alguns pensadores da patrística dos primeiros séculos da era cristã, como Eusébio e Lactâncio, tenham discutido argumentos dos filósofos céticos. No contexto da retomada dos clássicos destaca-se a obra de
Cícero (séc.I a.C.), um grande mestre de retórica e oratória, um grande estilista da língua latina, autor de um tratado político sobre a república romana e um pensador preocupado com questões de ética. Todos esses elementos foram bastante valorizados pelos humanistas. Cícero é sem dúvida um dos filósofos mais influentes nessa volta aos clássicos. Além disso, seu diálogo Hortensius, hoje perdido, foi o ponto de partida do interesse filosófico de santo Agostinho, o que o tornava aceitável aos cristãos. Tudo isso explica sua importância e influência nesse momento. Ora, Cícero, um pensador eminentemente eclético, foi também autor dos Academica, um diálogo sobre o ceticismo, e uma das fontes principais da retomada dessa filosofia.
Outra fonte importante foi Diógenes Laércio, cuja Vida e doutrina dos filósofos ilustres, traduzida para o latim no séc. XV, constitui o ponto de partida da redescoberta de muitos filósofos antigos até então ignorados, bem como o modelo de algumas histórias da filosofia, ou quase “crônicas filosóficas”, que serão escritas em seguida. Finalmente, a obra de Sexto Empírico, o principal expositor do ceticismo antigo em sua vertente pirrônica, é traduzida no séc. XVI, passando a influenciar fortemente o pensamento filosófico, principalmente quanto à discussão sobre a natureza humana e sobre a possibilidade do conhecimento de Montaigne a Hume e Kant. Os tropos, argumentos tradicionais dos céticos contra os dogmáticos, encontram-se presentes em muitos filósofos desse período.
As fontes céticas estavam portanto disponíveis, e o contexto da época – com suas crises profundas, rupturas e conflitos – favorecia a retomada das discussões dos céticos antigos. Examinemos um pouco melhor estes pontos de retomada do ceticismo.
Os céticos se destacaram na Antiguidade pelo questionamento das pretensões dogmáticas ao saber e por apontarem a inexistência de um critério decisivo para resolver disputas e conflitos entre teorias rivais. Ora, a crise da escolástica, a rivalidade entre protestantes e católicos, aristotélicos e platônicos, bem como a oposição entre ciência antiga e ciência moderna, parecem reproduzir exatamente o cenário de conflito de doutrinas discutido pelos céticos, despertando assim o interesse pelos argumentos desses filósofos.
Além disso, os céticos foram talvez os primeiros filósofos a questionar a possibilidade do conhecimento e a levantar a questão sobre os limites da natureza humana do ponto de vista cognitivo, o que será um dos grandes temas do pensamento moderno até Kant.
Nicolau de Cusa, em seu De docta ignorantia (1440), é um precursor dessa temática, argumentando que os limites de nosso entendimento só podem ser superados pela fé. Em seu De conjecturis, sustenta que todo conhecimento é conjectural e que a certeza é impossível, atacando as demonstrações lógicas dos aristotélicos e propondo em lugar disso uma arte conjectural com tabelas
numéricas de inspiração pitagórica e neoplatônica. A única saída está no elemento divino na natureza humana; vê assim o homem como um microcosmo que reflete em si a grandeza do macrocosmo.
Argumentos nessa linha, contra as pretensões tradicionais à cientificidade, encontram-se em Cornelio Agripa de Nettesheim (1486-1535), um antigo defensor do ocultismo, cujo De incertitudine et vanitate scientiarum et artium (Sobre a incerteza e o caráter vão das artes e das ciências) defende a revelação e a fé como únicas possibilidades de superar a incerteza de uma ciência incapaz de alcançar o verdadeiro saber.
O principal crítico da ciência tradicional e do método aristotélico foi o médico de origem portuguesa Francisco Sanchez (1550-1623). Em sua obra Quod nihil scitur (Que nada se sabe), de 1581, Sanchez ataca o ideal de uma ciência dedutivamente demonstrada, defendendo a experimentação e a verificação como único método aceitável, ainda que possibilitando apenas conclusões parciais e limitadas.
Erasmo de Rotterdam, em sua polêmica com Lutero acerca do livre-arbítrio, já havia levantado o problema do critério quanto à questão da interpretação das Sagradas Escrituras. Contra a defesa por Lutero da interpretação do fiel baseada em sua luz natural como mais autêntica do que a da Igreja, Erasmo contra argumenta que não temos por que considerar essa interpretação como melhor, já que não temos um critério independente para avaliá-la, o que só seria possível por meio de um acesso direto à palavra de Deus. Não há motivo, portanto, segundo Erasmo, para não aceitarmos a interpretação tradicional, já que no fundo todas se equivalem. A oposição entre a interpretação protestante e a católica suscita assim a problemática, tipicamente cética, da ausência de um critério conclusivo para se resolver a divergência.
No entanto, é talvez Michel de Montaigne (1533-92) quem pode ser considerado o filósofo mais importante desse período, quanto à retomada e ao desenvolvimento do ceticismo, inclusive devido à sua influência em Descartes. Na “Apologia de Raymond Sebond”, um dos textos mais longos dos Ensaios, Montaigne faz uma apresentação dos argumentos e princípios básicos do ceticismo antigo, que serviu de ponto de partida para muitas das discussões sobre o ceticismo nos sécs. XVI e XVII. Sua visão cética tem na verdade uma dimensão mais ética do que epistemológica ao defender um ideal de vida equilibrado e moderado. Essa posição foi importante devido ao grande prestígio político e intelectual de Montaigne, defensor da necessidade de adoção de uma atitude de tolerância religiosa no momento em que a França se encontrava dividida entre católicos e protestantes em guerra. Segundo Montaigne, não temos argumentos racionais para a defesa da religião, todos os argumentos sendo questionáveis pelo ceticismo; não há portanto por que defender uma determinada religião contra as outras em um sentido tão radical que leve à guerra, à morte e à
destruição. Montaigne adota assim um fideísmo moderado: já que não há argumentos em favor de uma determinada interpretação filosófica ou teológica da religião, é a fé que deve prevalecer. A fé não necessita de defesa racional, ou de argumentos a seu favor, por ser uma experiência do indivíduo, e é nisso que se apoia.
A visão cética de Montaigne pode ser considerada um dos pontos de partida do subjetivismo e do individualismo que encontramos na obra de filósofos do séc. XVII como Descartes. Diante de um mundo de incertezas, mergulhado em guerras e conflitos religiosos e políticos, o homem refugia-se dentro de si.
Q UADRO SINÓTICO
Conceito de modernidade: ruptura com a tradição, oposição entre o antigo e o novo, valorização do novo, ideal de progresso, ênfase na individualidade, rejeição da autoridade institucional.
Principais causas: Grandes transformações no mundo europeu dos sécs. XV XVI como a descoberta do Novo Mundo (Américas); surgimento de importantes núcleos urbanos em algumas regiões, principalmente na Itália (Florença); desenvolvimento de atividade econômica, sobretudo mercantil e industrial.
Humanismo renascentista: importância das artes plásticas, retomada do ideal clássico greco-romano em oposição à escolástica medieval, valorização do homem enquanto indivíduo, de sua livre iniciativa e de sua criatividade.
Reforma protestante: crítica à autoridade institucional da Igreja, valorização da interpretação da mensagem divina nas Escrituras pelo indivíduo, ênfase na fé como experiência individual.
Revolução científica: rejeição do modelo geocêntrico de cosmo e sua substituição pelo modelo heliocêntrico, noção de espaço infinito, visão da natureza como possuindo uma “linguagem matemática”, ciência ativa x ciência contemplativa antiga.
Redescoberta do ceticismo: a oposição entre o antigo e o moderno suscita a problemática cética do conflito das teorias e da ausência de critério conclusivo para a decisão sobre a validade destas teorias.
LEITURAS ADICIONAIS
BIGNOTTO, Newton. As origens do republicanismo moderno. Belo Horizonte,
UFMG, 2001.
BURKHARDT, A. A cultura do Renascimento na Itália. São Paulo, Companhia das Letras, 1991.
BURTT, E. A. As bases metafísicas da ciência moderna. Brasília, Ed. UnB, 1983. FALCON, Francisco e Antonio Edmilson Rodrigues. A formação do mundo moderno. Rio de Janeiro, Campus/Elsevier, 2006.
KOYRÉ, A. Estudos de história do pensamento científico. Rio de Janeiro, Forense, 1982.
______. Do mundo fechado ao universo infinito. Rio de Janeiro-São Paulo, Forense/USP, 1979.
JAPIASSÚ, H. A revolução científica moderna. Rio de Janeiro, Imago, 1985. ______. As paixões da ciência: Estudos de história das ciências. São Paulo, Letras & Letras, 1991.
MAQUIAVEL, N. O príncipe. São Paulo, Martins Fontes, 1995. MARICONDA, Pablo Rúben e Júlio Vasconcelos. Galileu e a nova física. São Paulo, Ody sseus, 2006.
MOURÃO, Ronaldo Rogério de Freitas. Copérnico: pioneiro da revolução astronômica. São Paulo, Ody sseus, 2005.
PINZANI, Alessandro. Maquiavel e O Príncipe. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2004.
POPKIN, R.H. O ceticismo de Erasmo a Spinoza. Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1997.
ROSSI, P. A ciência e a filosofia dos modernos. São Paulo, Unesp, 1992. SCRUTON, R. Introdução à filosofia moderna. Rio de Janeiro, Zahar, 1982. SKINNER, Quentin. As fundações do pensamento político moderno. São Paulo, Companhia das Letras, 1996.
Q UESTÕES E TEMAS PARA DISCUSSÃO
1. Quais as principais características da modernidade?
2. Por que a ideia de “moderno” tem frequentemente para nós um sentido positivo?
3. O que significa “humanismo”?
4. Qual a importância da arte no Renascimento?
5. Por que Lutero deu início à Reforma?
6. Em que sentido a Reforma protestante pode ser considerada parte da modernidade?
7. Como podemos entender o individualismo em relação ao humanismo renascentista e à Reforma protestante?
8. Quais as ideias centrais da revolução científica moderna?
9. Em que sentido o conceito moderno de ciência difere do antigo? 10. Como podemos entender as mudanças na visão de mundo que ocorrem nesse período?
11. Qual o impacto da descoberta do Novo Mundo sobre a visão de mundo europeia tradicional?
12. Em que medida o contexto do início da modernidade é propício à retomada do ceticismo antigo?
13. Quais as principais características do ceticismo no início do pensamento moderno?