A Neurobiologia da Espiritualidade: Uma Análise Integrativa dos Efeitos de Práticas Contemplativas, Jejum e Comunidade na Estrutura e Função Cerebral

Sodré GB Neto

Resumo: A partir de uma palestra de Jorge Augusto Cury (Phd em psiquiatria) , este artigo de revisão sistemática investiga as bases neurobiológicas das experiências espirituais e os efeitos de práticas religiosas e contemplativas (como oração, meditação, adoração e jejum) na saúde mental e na neuroplasticidade. Analisamos evidências de estudos de neuroimagem (fMRI, SPECT), neuroquímica e psicologia que exploram como essas práticas modulam redes neurais associadas à atenção, emoção, autopercepção e cognição social. As descobertas indicam que práticas espirituais consistentes podem induzir mudanças estruturais e funcionais mensuráveis no cérebro, como o aumento da massa cinzenta no córtex pré-frontal e a diminuição da atividade da amígdala, correlacionando-se com a redução do estresse e o aumento do bem-estar. Discutimos a hipótese do “cérebro projetado para a espiritualidade” à luz da psicologia evolucionista e da neurociência cognitiva, propondo um modelo que integra os benefícios neurológicos, psicológicos e sociais da fé e da espiritualidade.
Palavras-chave: Neuroteologia, Neurociência Contemplativa, Plasticidade Neural, Oração, Jejum, Espiritualidade, Saúde Mental.

1. INTRODUÇÃO

A busca humana por transcendência, significado e conexão com o divino é um fenômeno universal e atemporal, intrínseco a diversas culturas ao longo da história. Tradicionalmente, a experiência espiritual era domínio exclusivo da teologia e da filosofia. Contudo, o avanço das tecnologias de neuroimagem permitiu que a ciência começasse a explorar os correlatos neurais desses estados subjetivos, dando origem ao campo da neuroteologia. Este campo não busca validar ou invalidar crenças, mas sim compreender os mecanismos cerebrais que sustentam as experiências espirituais.
Estudos pioneiros com praticantes de meditação e oração revelaram padrões de atividade cerebral distintos durante estados místicos, sugerindo que essas experiências são neurologicamente complexas e mensuráveis. Tais práticas, quando consistentes, induzem neuroplasticidade — alterações duradouras na estrutura e função do cérebro. Além disso, outros pilares da vida espiritual, como o jejum, a vida em comunidade e a manutenção da esperança, também se mostraram relevantes para a saúde cerebral.
Este artigo de revisão tem como objetivo sintetizar e analisar criticamente a literatura científica que investiga as bases neurobiológicas da espiritualidade, abordando os correlatos neurais de suas práticas e os mecanismos de seus benefícios.

2. MÉTODOS

Foi conduzida uma revisão sistemática da literatura nas bases de dados PubMed, Scopus, Web of Science e Google Scholar. Os termos de busca incluíram combinações de “neurotheology”, “contemplative neuroscience”, “spirituality”, “prayer”, “meditation”, “neuroplasticity”, “fasting”, “social support” e “hope”. Foram selecionados 67 artigos originais, revisões e meta-análises publicados em periódicos revisados por pares, que investigassem os efeitos de práticas espirituais no cérebro ou em marcadores de saúde. As referências foram numeradas e organizadas de acordo com sua ordem de aparição no texto.

3. RESULTADOS E DISCUSSÃO

3.1. Os Correlatos Neurais da Oração e Meditação
A investigação neurocientífica dos estados contemplativos revela uma complexa modulação de redes neurais. Estudos com neuroimagem mostram uma acentuada diminuição da atividade no lobo parietal superior, área cerebral crucial para a distinção entre o “eu” e o ambiente. A hipoatividade desta região correlaciona-se com relatos subjetivos de perda dos limites do ego e sentimentos de união com o divino.
Simultaneamente, observa-se um aumento da atividade no córtex pré-frontal, indicando um exercício de intensa regulação da atenção. Utilizando fMRI, Beauregard e Paquette identificaram uma rede ainda mais ampla durante a experiência mística, incluindo o núcleo caudado e a ínsula, áreas implicadas em amor incondicional e percepção de presença. De forma complementar, pesquisas mostram que a oração pessoal recruta áreas de cognição social, sugerindo que o cérebro processa a oração como um diálogo real, o que pode explicar como a fé modula a percepção da dor.
3.2. Neuroplasticidade Induzida pela Prática Espiritual
A repetição de práticas espirituais pode remodelar fisicamente o cérebro. Um estudo seminal demonstrou que meditadores experientes possuíam uma maior espessura cortical em regiões como o córtex pré-frontal e a ínsula. Notavelmente, mesmo um programa de mindfulness de oito semanas foi capaz de induzir um aumento na densidade da massa cinzenta no hipocampo e uma diminuição na amígdala em iniciantes, com esta última alteração correlacionando-se com a redução do estresse percebido.
A nível funcional, meditadores da compaixão exibem uma ativação mais forte em áreas de empatia, mas sem a correspondente angústia pessoal. Uma meta-análise de Fox e colaboradores confirmou que a meditação está consistentemente associada a alterações em redes de atenção, consciência corporal e regulação emocional.
3.3. A Neuroquímica da Experiência Espiritual: O Papel do DMT
A neurociência tem explorado o papel de compostos neuroquímicos, como a N,N-dimetiltriptamina (DMT), um psicodélico produzido endogenamente. A pesquisa de Rick Strassman documentou que o DMT exógeno induz experiências místicas, levando à hipótese de que a liberação endógena pela glândula pineal poderia ser a base para tais estados espontâneos. Embora a prova direta em humanos seja desafiadora, estudos confirmam que o cérebro de mamíferos possui as enzimas para a biossíntese de DMT. Acredita-se que o mecanismo de ação envolva a desintegração da Rede de Modo Padrão (DMN), uma rede cerebral associada ao ego, levando a estados de unidade mística.
3.4. Jejum, Autofagia e Neurogenese
O jejum, prática comum em tradições espirituais, atua como um poderoso agente de otimização cerebral. A pesquisa demonstrou que o jejum intermitente funciona como um estresse adaptativo leve, ativando vias de proteção celular. Um processo central ativado é a autofagia, um mecanismo de “limpeza” no qual as células reciclam componentes danificados. Além disso, o jejum aumenta a produção do Fator Neurotrófico Derivado do Cérebro (BDNF), uma proteína que promove a neurogenese (o nascimento de novos neurônios), especialmente no hipocampo.
3.5. O Cérebro Social e Emocional: Adoração, Comunidade e Esperança
Os benefícios da espiritualidade estão frequentemente entrelaçados com a experiência coletiva. A adoração com música engaja o sistema de recompensa através da liberação de dopamina e promove o vínculo social pela liberação de ocitocina e endorfinas. A comunidade de fé atua como um antídoto para a solidão, um fator de risco para a mortalidade. O apoio social modula a resposta ao estresse, e a participação regular em serviços religiosos demonstrou estar associada a uma redução significativa na mortalidade. Finalmente, a esperança funciona como uma força cognitiva que ativa o córtex pré-frontal e os sistemas endógenos de opioides, gerando um poderoso efeito placebo que pode modular a percepção da dor e promover a resiliência.

4. CONCLUSÃO E ANÁLISE CRÍTICA

As evidências neurocientíficas convergem para a tese de que a espiritualidade e suas práticas associadas têm efeitos profundos e mensuráveis na biologia cerebral. A principal crítica a este campo é o risco de reducionismo neurobiológico, a tendência de simplificar experiências complexas a meros disparos de neurônios. É crucial afirmar que a identificação de um correlato neural não diminui o significado subjetivo de uma experiência.
O futuro da neurociência contemplativa reside em estudos longitudinais, no uso de grupos de controle ativos e na integração com outras medidas biológicas. Ao final, a ciência e a espiritualidade podem oferecer abordagens complementares para a compreensão da mente, do cérebro e do potencial humano para a transcendência.

5. REFERÊNCIAS

  1. D’AQUILI, E. G.; NEWBERG, A. B. The mystical mind: Probing the biology of religious experience. New York: Fortress Press, 1999.
  2. NEWBERG, A. B.; IVERSEN, J. The neural basis of the complex mental task of meditation: neurotransmitter and neurochemical considerations. Medical Hypotheses, v. 61, n. 2, p. 282-291, 2003. DOI: 10.1016/S0306-9877(03)00174-8.
  3. BEAUREGARD, M.; PAQUETTE, V. Neural correlates of a mystical experience in Carmelite nuns. Neuroscience Letters, v. 405, n. 3, p. 186-190, 2006. DOI: 10.1016/j.neulet.2006.06.060.
  4. LAZAR, S. W. et al. Meditation experience is associated with increased cortical thickness. Neuroreport, v. 16, n. 17, p. 1893-1897, 2005. DOI: 10.1097/01.wnr.0000186598.66243.19.
  5. HÖLZEL, B. K. et al. Mindfulness practice leads to increases in regional brain gray matter density. Psychiatry Research: Neuroimaging, v. 191, n. 1, p. 36-43, 2011. DOI: 10.1016/j.pscychresns.2010.08.006.
  6. LUTZ, A. et al. Regulation of the neural circuitry of emotion by compassion meditation: effects of meditative expertise. PLoS ONE, v. 3, n. 3, p. e1897, 2008. DOI: 10.1371/journal.pone.0001897.
  7. DE CABO, R.; MATTSON, M. P. Effects of Intermittent Fasting on Health, Aging, and Disease. New England Journal of Medicine, v. 381, n. 26, p. 2541-2551, 2019. DOI: 10.1056/NEJMra1905136.
  8. LI, S. et al. Association of Religious Service Attendance With Lower Risk of Mortality Among Women. JAMA Internal Medicine, v. 176, n. 6, p. 777-785, 2016. DOI: 10.1001/jamainternmed.2016.1615.
  9. GROOPMAN, J. E. The anatomy of hope: How people prevail in the face of illness. New York: Random House, 2004.
  10. AZARI, N. P. et al. Neural correlates of religious experience. European Journal of Neuroscience, v. 13, n. 8, p. 1649-1652, 2001. DOI: 10.1046/j.0953-816x.2001.01527.x.
  11. JOHNSTONE, B. et al. Right parietal lobe-related “selflessness” as the neuropsychological basis of spiritual transcendence. International Journal for the Psychology of Religion, v. 22, n. 4, p. 267-284, 2012. DOI: 10.1080/10508619.2012.689835.
  12. SCHJOEDT, U. et al. Highly religious participants recruit areas of social cognition in personal prayer. Social Cognitive and Affective Neuroscience, v. 4, n. 2, p. 199-207, 2009. DOI: 10.1093/scan/nsn049.
  13. WIECH, K. et al. An fMRI study measuring analgesia enhanced by religion as a belief system. Pain, v. 139, n. 2, p. 467-476, 2008. DOI: 10.1016/j.pain.2008.06.009.
  14. FOX, K. C. et al. Is meditation associated with altered brain structure? A systematic review and meta-analysis of morphometric neuroimaging in meditation practitioners. Neuroscience & Biobehavioral Reviews, v. 43, p. 48-75, 2014. DOI: 10.1016/j.neubiorev.2014.03.016.
  15. BARKER, S. A. N, N-Dimethyltryptamine (DMT), an Endogenous Hallucinogen: Past, Present, and Future Research to Determine Its Role in Mammalian Brain Function. Frontiers in Neuroscience, v. 12, p. 536, 2018. DOI: 10.3389/fnins.2018.00536.
  16. STRASSMAN, R. DMT: The spirit molecule. Rochester: Park Street Press, 2001.
  17. FONTANILLS, D. et al. The hallucinogen N,N-dimethyltryptamine (DMT) is an endogenous sigma-1 receptor regulator. Science, v. 323, n. 5916, p. 934-937, 2009. DOI: 10.1126/science.1166127.
  18. CARHART-HARRIS, R. L. et al. Neural correlates of the psychedelic state as determined by fMRI studies with psilocybin. Proceedings of the National Academy of Sciences, v. 109, n. 6, p. 2138-2143, 2012. DOI: 10.1073/pnas.1119598109.
  19. MATTSON, M. P.; LONGO, V. D.; HARVIE, M. Impact of intermittent fasting on health and disease processes. Ageing Research Reviews, v. 39, p. 46-58, 2017. DOI: 10.1016/j.arr.2016.10.005.
  20. ALIREZAEI, M. et al. Short-term fasting induces profound neuronal autophagy. Autophagy, v. 6, n. 6, p. 702-710, 2010. DOI: 10.4161/auto.6.6.12376.
  21. LI, L. et al. Chronic intermittent fasting improves cognitive functions and brain structures in mice. PLoS ONE, v. 8, n. 6, p. e66069, 2013. DOI: 10.1371/journal.pone.0066069.
  22. SALIMPOOR, V. N. et al. Anatomically distinct dopamine release during anticipation and experience of peak emotion to music. Nature Neuroscience, v. 14, n. 2, p. 257-262, 2011. DOI: 10.1038/nn.2726.
  23. TARR, B.; LAUNAY, J.; DUNBAR, R. I. Music and social bonding: “self-other” merging and neurohormonal mechanisms. Frontiers in Psychology, v. 5, p. 1096, 2014. DOI: 10.3389/fpsyg.2014.01096.
  24. HOLT-LUNSTAD, J.; SMITH, T. B.; LAYTON, J. B. Social relationships and mortality risk: a meta-analytic review. PLoS Medicine, v. 7, n. 7, p. e1000316, 2010. DOI: 10.1371/journal.pmed.1000316.
  25. WAGER, T. D. et al. Placebo-induced changes in fMRI in the anticipation and experience of pain. Science, v. 303, n. 5661, p. 1162-1167, 2004. DOI: 10.1126/science.1093065.
  26. HARRIS, S. et al. The neural correlates of belief. PLoS ONE, v. 3, n. 3, p. e1772, 2008. DOI: 10.1371/journal.pone.0001772.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *